Saltar para: Post [1], Comentar [2], Pesquisa e Arquivos [3]
... começa logo aos três ou quatro anos, e é se não for antes, quando nos começam logo a pôr lacinhos cor de rosa na careca. É nessa altura que, sob a batuta da gente crescida, começamos a treinar para a carreira. Ainda tropeçamos nos pés e a passerelle passa por debaixo das mesas. Por enquanto, ainda só vemos pernas e, assim, é natural que nos concentremos nelas primeiro, as agarremos e as apalpemos. Ninguém se chateia com isso.
Às vezes choramos porque vamos ao chão e faz dói-dói. Mas também nos fartamos de rir e somos bem recompensadas. Não há nada de especial nisto. É como em muitas artes nobres, a dança clássica ou a tocata ao piano. Tem de se começar cedo e nunca mais parar de praticar se se quer atingir a perfeição.
Adoro quando apanho estes pedaços de carreira em construção das nossas carreiras de lolitas pequenas. E isso acontece à força do amor, do amor de quem realmente nos ama. Porque quem nos ama pega-nos ao colo e belisca-nos as bochechas, dá-nos palmadinhas no rabo e beijinhos ternurentos nas mãos. Dá-nos rebuçados, cada vez mais coloridos e frutados, e roupinhas sexy para criança. Além disso, protegem-no do mundo exterior, que é sempre horrível e predatório.
Mas, o mais importante, é a recompensa de nos sentirmos giras, de nos dizerem que somos gajas giras, que temos uma carinha laroca e que tudo gira à nossa volta e... à altura do nosso palmo e meio. As gajas e os gajos grandes acocorocam-se para nos acompanhar. E eu confesso que gosto muito de os ver baixar até ao meu nível. Mas não julguem que isto se passa na intimidade do lar.
Nada disso.
É ali, à vista de toda a gente, no lugar mais público e, ao mesmo tempo privado, que pode existir, o café.
‘Cu-cu! Ó gaja gira!’, diz-me o dono do café.
A mulher dele, que eu adoro porque me deixa sempre ir vê-la a fazer os bolos lá em baixo na cozinha, repete:
‘Cu-cu! Lindaaaa! Linda, és muito linda!’
Acocoroca-se e eu finjo que quero ir ter com ela. Já aprendi que é isso que ela quer que eu faça:
‘ Cu-cu! Vem cá ao colo da titi!’
Nesta altura estou a rir desalmadamente, porque isto é para rir. Eu tenho de rir, porque se não o fizer vão pensar que estou doente e levam-me à pediatra. Tenho também de, ao mesmo tempo que rio, correr para ela mas escapar-me por debaixo de outra mesa. Eu sei que é isso que todos querem que eu faça. Sinto-me a ser observada pelo buraco da fechadura, mas não há nada a fazer a não ser aprender.
‘Ó gaja, és muito atrevida! Como te chamas? Diz lá o teu nome, anda, vá!’
Pronto, quando ouço isto, já sei que por hoje aprendi a lição e tenho o meu prémio simbólico de reconhecimento público de gaja gira. Ainda me sinto um bocado envergonhada, mas eles é que hão de encarregar-se de tirar-me essa vergonha da cara. Por isso, hei de perceber daqui a nada que esconder a cara atrás das mãos é só um truque.
‘Olha, repete lá: Eu sooouuuu muuuitoooo giraaaaaa! Repete!’
‘Olha, assim já ficas feia, a esconder a cara! Ai que cara tão feia!...
Claro que eu não quero ser feia. É que se for feia, nem sequer posso ser gaja, nem ganho coisas giras de gaja. Então digo:
‘Giraaaaa!’
‘Ora, vês, como tu já sabes’!
Claro que sei, podem não me chamar de Lolita, mas sou uma gaja gira, que com ser feia é que não levo nada.
Esta crónica teve um tempo real de exposição de 40 minutos, sob luz interior matinal, no café da Sara e do Fernando. Estiveram presentes:
Os pais da criança
A criança do sexo feminino
Outra criança do sexo feminino
O casal proprietário do café, mulher e homem
Três consumidores, que não quiseram declarar o número de contribuinte na fatura.
Eu, que observei,
e que também me recusei a dar o meu número de contribuinte. Não é por nada, mas é que acho um bocado pornográfico que o Estado me veja a beber os meus cafés na intimidade com os meus amigos. O Estado é o Humbert Humbert da Lolita, só que sem moral nenhuma e sem ir preso. Mas isto foi só um aparte, que nem deveria aparecer aqui na ficha técnica. Mas, já agora, outro aparte: realizei esta crónica sob efeito de consumo de uma droga estimulante que, porém, tirando essa coisa de ter de declarar que a consumi, é paga e tem taxa de iva incluída.
A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.